Logo no começo da cinebiografia Bohemian Rhapsody, um jovem Freddie Mercury explica ao baterista Roger Taylor e ao guitarrista Brian May o motivo de ter o lábio superior projetado para frente: “Nasci com quatro dentes a mais. Isso aumenta o alcance da minha voz”. Apesar de a cena ser fictícia, o cantor, de fato, creditava aos incisivos extras ao menos parte do sucesso de uma das vozes mais admiradas da história da música e que, geração após geração, provoca arrepios toda vez que uma canção do Queen é tocada.
A largura da boca — maior para abrigar os dentes a mais — de fato pode ter ajudado a potencializar a voz de Mercury, explicam especialistas. Mas a beleza, a força e a intimidade que tinha com as notas musicais, das mais graves às mais agudas, devem-se a um conjunto de fatores que já foi estudado pela ciência. Pesquisador da voz na Universidade de Viena, Christian T. Herbst também é fã confesso do Queen e resolveu, há três anos, examinar registros sonoros falados e cantados do artista para tentar desvendar ao menos parte do brilhantismo de Mercury.
“A voz de Freddie Mercury já foi descrita como ‘a força da natureza com a velocidade de um furacão’, que ‘em, poucos compassos, passava de um rugido profundo e gutural a um vibrante tenor para, em seguida, se tornar um agudo prefeito, puro e cristalino”, escreveu Herbst no artigo, publicado na revista científica Logopedics Phoniatrics Vocology. “Essas descrições, enquanto presumivelmente adequadas para uma biografia ou uma matéria de jornal, não satisfazem os interesses acadêmicos nas características da voz do cantor”, afirmou, justificando a pesquisa.
O cientista valeu-se de entrevistas gravadas, faixas de músicas em que se retiraram os backing vocals dos outros integrantes da banda e ainda fez um experimento laringoscópico com um cantor imitando Mercury para tentar compreender como ele usava as cordas vocais. A primeira surpresa foi que, embora cantasse em uma extensão vocal típica de um tenor, ao falar, o artista mantinha-se em uma frequência de 117,3Hz, mais típica de barítono.
Elasticidade
O estudo de Herbst mostrou que, ao contrário do que se pensava, a voz de Mercury não alcançava quatro oitavas (imagine 48 teclas, pretas e brancas, de um teclado), mas 37 semitons, em uma frequência variando de 92,2Hz (mais grave) a 784Hz (mais aguda). Curiosamente, quem tem essa extensão vocal mais ampla é outro componente do Queen, o baterista Roger Taylor, que canta o “Galieo, Figaro” de Bohemian Rhapsody. Porém, ainda que não chegasse às quatro oitavas, a voz de Mercury era extremamente maleável, indo, sem sufoco, do F#2 ao G5 (veja infografia).
Na opinião do cantor erudito e maestro Alexandre Innecco, Mercury inteligentemente se valeu da ampla zona de frequência em que se sentia à vontade nas músicas que ele e os colegas de banda compunham. “Ele soube explorar isso muito bem no repertório do Queen. As músicas evidentemente eram compostas para a voz de Mercury. Ao cantar, ele sobe, desce, faz falsete (registro mais agudo ou mais grave que a extensão vocal individual) com muita facilidade. Mercury tinha uma voz extremamente elástica”, diz.
Vibrato
O cientista da voz Christian T. Herbst também estudou uma forte característica de Mercury: o vibrato, um ornamento da música que consiste em fazer uma ondulação harmoniosa e uniforme da frequência do som. O pesquisador austríaco analisou 240 notas sustenidas com vibrato de 21 gravações a cappella (sem instrumento). “Um vibrato completamente regular naturalmente contém apenas uma modulação de frequência. Em contraste, o estudo preliminar do vibrato vocal de Freddie Mercury sugere padrões de modulação mais irregulares, causados pela superposição de mais de um componente de modulação de frequência”, disse. Irregularidade, nesse caso, não é um defeito. Ao contrário, Herbst nota que esse efeito faz da voz de Mercury algo absolutamente único.
Sem ter como analisar o uso das pregas vocais pelo artista, Herbst fez um experimento em que um cantor de rock profissional, imitando a forma de cantar de Freddie Mercury, teve a laringe filmada. O teste sugere que o vocalista do Queen utilizava, simultaneamente, as pregas vocais e as vestibulares, popularmente conhecidas como “falsas cordas vocais”. “Essas duas outras pregas acabam funcionando como outro gerador de onda sonora. E, quanto mais harmonia tem uma voz, mais bela ela é”, explica a fonoaudióloga especialista em voz Claudia Pacheco, consultora do Centro de Estudos da Voz, em São Paulo, e membro da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia.
Embora o estudo de Herbst não tenha investigado a influência dos dentes a mais de Freddie Mercury na voz do cantor, Claudia Pacheco diz que isso é possível. Ela explica que a prega vocal gera o primeiro sinal sonoro que, em forma de ondas, é transmitido para o trato vocal, composto também pelos espaços de ressonância — a boca e as cavidades nasais. “Esses espaços tanto amplificam como abaixam o som. A voz é como um instrumento, assim como o violão, em que a corda vibra e a caixa reverbera”, compara.
Para a especialista, o fascínio exercido por Mercury é o conjunto do timbre, da extensão vocal, da estrutura da caixa de ressonância, do domínio do aparelho fonador e do controle respiratório, além da maneira de interpretar as canções. “Não é só a voz que faz um cantor, mas a personalidade artística. É isso que faz dele excepcional.”
Fonte: Correio Braziliense
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