Os biólogos holandeses Liselotte Rambonnet, de 29 anos, e Auke-Florian Hiemstra, de 28, pesquisam os impactos ambientais que o lixo causa na vida selvagem há anos. Rambonnet é especializada em ciência cidadã e investiga como pessoas comuns podem participar de projetos de pesquisa; Hiemstra, especialista em arquitetura animal, estuda o uso de plástico por pássaros na construção de ninhos. Juntos, ela e ele coordenam um projeto chamado Plastic Spotter, um grupo de quatrocentos voluntários dedicados a encontrar e retirar resíduos plásticos dos canais do Centro de Leiden, cidade a 45 km da capital Amsterdam. Duas semanas após o primeiro caso confirmado de Covid-19 na Holanda, o grupo começou a encontrar máscaras descartáveis nos canais de Leiden. A pandemia fez disparar a produção de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), e um estudo publicado em fevereiro deste ano estima que a humanidade esteja utilizando, por mês, 129 bilhões de máscaras e 65 bilhões de luvas.
A mudança no perfil dos resíduos encontrados em Leiden, com a presença maciça de EPIs para proteger seres humanos da Covid-19, chamou a atenção dos cientistas, que deram início à primeira pesquisa voltada a compreender a extensão dos danos do lixo pandêmico. Eles começaram a catalogar todos os casos de interação animal com os descartes relacionados à pandemia que puderam encontrar. Criaram um banco de dados colaborativo, para que qualquer pessoa no mundo possa incluir os próprios registros. O artigo foi publicado no fim do mês passado na revista científica Animal Biology e, mesmo com a subnotificação de casos, os resultados são preocupantes: o descarte inadequado do plástico está afetando todos os tipos de animais. Como o material demora centenas de anos a se decompor e deixa resíduos menores chamados de microplásticos, os danos são difíceis de mensurar.
“Só de circular de canoa numa pequena área no Centro da cidade por uma ou duas horas, já é possível coletar mais de cem máscaras faciais. Nunca tínhamos encontrado uma máscara sequer antes da pandemia, mas agora é o que achamos com mais frequência. O que realmente nos intriga como biólogos é perceber quão amplo é o espectro de animais afetados por lixo de Covid. Não são só gaivotas que se enroscam nem só peixes que ficam presos em armadilhas. Nossos resíduos de EPI estão afetando animais na terra e no ar, na água salgada e na água doce. Todos os tipos de animais estão sendo prejudicados, vertebrados e invertebrados, selvagens e domésticos”, explicou Hiemstra.
A dupla começou o estudo em agosto de 2020, quando, durante uma limpeza de rotina nos canais de Leiden, encontrou um peixe perca preso no polegar de uma luva de látex. No mesmo local, um galeirão-comum, espécie de ave aquática, estava usando máscaras e luvas como matéria-prima para construir ninhos. A partir dessas observações, os pesquisadores começaram a procurar na internet registros de interação animal com o lixo pandêmico. Fizeram buscas em holandês e inglês e, por busca reversa de imagens, chegaram a casos em outros idiomas que não dominam, como italiano ou francês. Até o momento, catalogaram 45 casos em países da Europa, América e Ásia.
Por meio da hashtag #glovechallenge, utilizada para compartilhar observações sobre o uso de luvas e máscaras, os biólogos tiveram acesso a 11 mil fotos de coronalixo ao redor do mundo. Também citam no artigo um projeto holandês que registrou 6.347 casos de lixo pandêmico poluindo o país em maio e junho de 2020. Num primeiro momento, os materiais de EPI eram encontrados perto de mercados e hospitais; com a obrigatoriedade do uso de máscaras em transportes, passaram a se espalhar por estações de trem e ônibus. Para os pesquisadores, o aumento de produção e consumo leva à inevitável interação desses itens com a vida animal.
“Graças a fotógrafos da natureza, centros de resgate animal, observadores de pássaros e coletores de lixo, aprendemos muito sobre o quão prejudiciais os produtos de EPI podem ser. Macacos, peixes, ouriços, pinguins, caranguejos e vários outros animais são afetados, até os de estimação como gatos e cães. Deve haver muitos outros exemplos que não conseguimos encontrar sozinhos. A maioria dos eventos na nossa lista ocorreram na Holanda, mas nosso país é tão pequeno! Supomos que haja muitas interações entre animais e lixo pandêmico em países grandes como China e Rússia, mas, como não falamos essas línguas, não conseguimos encontrar esses registros. Qualquer leitor que tenha observado novos eventos ou saiba de algum que esteja faltando pode incluí-los no nosso banco de dados”, reforça Hiemstra.
O mais comum é que os animais tenham alguma parte do corpo enrolada nas máscaras ou fiquem presos em armadilhas, a exemplo do peixe na luva. Também há casos de ingestão, como o de um pinguim-de-magalhães encontrado morto na praia de Juqueí, em São Sebastião, no litoral de São Paulo, em setembro de 2020. A autópsia revelou que ele havia engolido uma máscara descartável, e o caso teve repercussão internacional. Mas pode não ter sido o único: de abril a setembro, o Instituto Argonauta encontrou 113 máscaras descartáveis nas praias paulistas.
“Nós conseguimos até detectar sintomas de Covid-19 em alguns dos animais que tiveram contato com esses resíduos. No estudo, descrevemos os primeiros casos de pássaros construindo ninhos com máscaras faciais. Os galeirões dos canais holandeses têm usado máscaras e luvas, e até as embalagens de lenços de papel, cujo uso aumentou bastante com a Covid-19, são encontradas nos ninhos também. O peixe perca foi a primeira vítima do lixo pandêmico registrada na Holanda”, contou Hiemstra.
Segundo o artigo, no caso do perca, a luva estava parcialmente rasgada na base do polegar, onde o peixe ficou preso, e esse rasgo pode ser um resultado de sua tentativa de escapar. Para os cientistas, a barbatana dorsal provavelmente impediu que ele conseguisse sair nadando para trás. Como a luva estava parcialmente do avesso, deve ter sido usada antes do descarte e poderia estar infectada. O corpo, ainda na luva, foi armazenado em álcool como parte da coleção ‘De Grachtwacht’, em Leiden. Dois anos antes, o primeiro peixe preso a uma luva próximo a Tossa de Mar, na Espanha, teve grande repercussão. De acordo com os pesquisadores, o perca recém-encontrado, porém, mostra que o plástico também afeta os ecossistemas de água doce menos estudados, e que a nova onda de lixo de luvas de EPI pode tornar esse tipo de armadilha mais frequente no futuro.
“É irônico que esses materiais que nos protegem estejam ferindo os animais ao nosso redor. Máscaras faciais descartadas permanecerão no ambiente por centenas de anos, muito depois que todos nós tivermos nos esquecido da pandemia. Elas inevitavelmente vão se decompor em pedaços menores de microplásticos que jamais se degradam, entram na cadeia alimentar e podem acabar até no nosso próprio prato”, alerta Hiemstra.
A primeira vítima do coronalixo registrada pelos pesquisadores foi um tordo americano, que morreu após se enroscar numa máscara facial em Chilliwack, no Canadá, em 10 de abril de 2020. Depois disso, uma jovem gaivota foi encontrada andando com uma máscara enroscada em suas patas em Chelmsford, Essex, no Reino Unido. Ela batalhou por duas semanas para se soltar e ficou com os membros e juntas inchados, mas conseguiu se recuperar no Hospital de Vida Selvagem de Essex do Sul. Filhotes de cisne-branco do Lago Bracciano, perto de Roma, foram vistos com máscaras faciais em seus bicos, e um pato real com uma máscara pendurada no pescoço, em Casentino, na Itália, foi citado na imprensa local como “o pato incapaz de tirar a máscara”.
Uma gaivota recém-encontrada em Rotterdam, na Holanda, morta após ser atropelada por um carro, também tinha uma máscara enrolada nas patas. Para os cientistas, por mais que não tenha sido a causa da morte, a armadilha pode ter enfraquecido a ave antes da colisão. A fim de prevenir esses acidentes, grupos de ambientalistas convocam as pessoas a cortarem as luvas e retirarem as alças das máscaras antes do descarte, em estratégia similar àquela usada para anéis de plástico que integram embalagens de bebida. Para Hiemstra, o esforço individual tem impacto considerável, mas é necessário ir além.
“É impressionante que todas as descobertas de animais enrolados, presos, que ingeriram EPIs ou incorporaram esses itens em seus ninhos envolvam produtos descartáveis. Trocá-los por itens reutilizáveis resultaria em uma redução de 95% no desperdício. Máscaras reutilizáveis têm risco bem menor de acabar no meio ambiente, já que tendemos a ser mais cuidadosos com estas do que com as descartáveis. Governos e indústrias deveriam levar em consideração o impacto ambiental desde a concepção e a produção, incluindo os efeitos do descarte inadequado. Além disso, é preciso conscientizar as pessoas sobre os efeitos do plástico no meio ambiente”, defende. Com informações de Folha Piauí e Super. Abril.
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